Magazine 57 - page 113

Antes de ser mãe, rodava a cidade de motoca. O Joaquim
ficava muito preocupado com acidentes, por isso fiquei
moita e não contei quando levei um tombo horrível na
Rua Marquês de São Vicente. Passei duas semanas usando
manga comprida em pleno verão na tentativa de esconder
o cotovelo ralado. Menti, ou melhor, omiti, para evitar um
problema que seria ele querer confiscar meu veículo, o que
acabou acontecendo quando engravidei.
Elogiar o novo cabelo da cunhada que você, no fun-
do, achou meio feio, uma comida indigesta que um ca-
sal de amigos preparou com todo o carinho para te re-
ceber no sábado à noite, dizer que adorou um presente
inútil que ganhou de aniversário, ignorar que o vestido
novo e poderoso que a sua melhor amiga comprou em
muitas prestações e veio mostrar toda empolgada está
vestindo mal faz parte de uma categoria muito parti-
cular de mentiras: as necessárias. Mentimos, porque a
verdade, muitas vezes, nos deixa desconfortáveis. Se
todos falassem com sinceridade a vida em sociedade
seria muito mais difícil, talvez até impossível.
O que não vale, na minha opinião, são as mentiras
por necessidade de aceitação, por baixa autoestima.
Essas são predadoras e se voltam contra quem as em-
prega. Muito sábias as palavras de Dostoiévski em Os
Irmãos Karamázov: “O principal é não mentir para si
mesmo. Quem mente para si mesmo e dá ouvidos à
própria mentira chega a um ponto em que não distin-
gue nenhuma verdade nem em si, nem nos outros e,
portanto, passa a desrespeitar a si mesmo e aos de-
mais. Sem respeitar ninguém, deixa de amar e, sem ter
amor, para se ocupar e se distrair entrega-se a paixões
e a prazeres grosseiros e acaba na total bestialidade em
seus vícios, e tudo isso movido pela contínua mentira
para os outros e para si mesmo.”
com o marido de que para entrar um novo par no armário
um velho deveria sair. E quando o marido pergunta quanto
custou determinada coisa, essas mulheres são daquele time
que sempre responde arredondando para baixo.
Quando viajo com o Joaquim, meu marido, e saio para
fazer compras sozinha, admito que tenho os meus truques
para poupar o relacionamento: procuro compactar tudo no
menor número de sacolas para não assustá-lo no meu retor-
no. E pago as miudezas em dinheiro para ter menos linhas
de débito no extrato do cartão de crédito da família.
Quando se trata de filhos, então, a licença para mentir au-
menta. Uma febrinha à toa de criança que, provavelmente,
vai embora rapidamente ministrando 15 gotas de Allivium,
ultrapassa os 39 graus quando a gente precisa de uma boa
desculpa para não ir num evento mala. Uma amiga, outro
dia, me escreveu que não poderia ir ao meu encontro, por-
que seu bebê estava com uma baba estranha.
Entendam bem, não estou falando de babá, cuidado-
ra, e sim da saliva que escorre pela boca. Me pareceu
uma baita desculpa esfarrapada, mas o que envolve a
saúde de uma criança ninguém questiona. Ainda estou
de licença maternidade, que funciona como um exce-
lente período de “autos”. Todo mundo é mais com-
preensível com o delay nas respostas aos e-mails, com
os compromissos que precisam ser reagendados. Tenho
sempre a desculpa do cansaço, das noites em claro,
mesmo nas noites em que meu bebê se comportou
como um anjinho.
A crise no país também ajuda muita gente a dizer não
com o pé nas costas. Para os amigos que vendem joias,
para os telefonemas em busca de doação, para o pedi-
do de reajuste de salário.
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